quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

a cidade dos artistas ou noite estrelada



Pra fechar o ano cheio de cores, porque há muito que agradecer. Gracias!

(De Van Gogh, por mim)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

passaredo



Era uma vez um ninho vazio. Sujo ainda do último morador. Estava ali bem perto um passarinho bem amarelinho. Ele avistou de longe o ninho, não viu se estava sujo (pra ele não importavam essas coisas). Ficou voando por perto, averiguando o espaço. Pousou no galho mais próximo e ficou olhando com seu olho de passarinho. Quando viu que estava vazio, voou rapidamente para não perder o lugar. Foi, aos poucos, limpando a sujeira que o último deixou. Cuidou do ninho como nenhum morador jamais havia feito. E, por fim, se instalou.
O ninho sentiu-se acolhido (estava feliz com o novo passarinho – tão amarelinho). Como estavam quentinhos e confortáveis o ninho e o passarinho! Eles até podiam dizer que se amavam. E Rubem Braga já havia dito: “Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar”. Mas mesmo correndo todos esses riscos que a vida impõe, o ninho e o passarinho sabem que, aconchego igual aos dois, não há nem nunca houve. E não se há de ter medo.

sábado, 22 de novembro de 2008

morena dos olhos d’água


Lily Braun se encontra às vezes em situações muito complicadas. E a sensação que ela tem é bem ruim, quase uma tristeza infantil. Ela me perguntou se eu poderia desenhar, enquanto ela me explicava.
Estava ela no alto de um morro (um morro de um verde bem forte, bem bonito), sentada com as pernas dobradas quase no peito. (Os braços ela ainda não sabia onde estavam). E no alto do morro, bem atrás dela, havia uma árvore bem bonita, com folhas bem verdes (mas sem frutos – ainda). Me disse que, quando houvesse frutos, seriam bem vermelhos. Da cor das unhas dela.
No pé do morro, tinha uma cidade cinza, pequena como uma maquete. Em cima do morro, ao seu lado e atrás dela, havia um monte de mini-pessoas (elas deviam vir da cidade) e estavam todas gritando o que ela devia fazer (e como) – mas todas gritavam naquela condição de pequenos. Alguns a espetavam com suas mini-espadinhas. E ela só queria um pouco de paz.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

ela desatinou ou a história das passas

Elas moravam no bairro Padre Eustáquio, na época um tradicional bairro operário de Belo Horizonte.
Minha avó havia pedido pra sua filha caçula comprar cinqüenta gramas de passas e lhe deu algo que hoje corresponderia a cinqüenta reais (a moeda na época era cruzeiro). Minha tia foi à feira, criança que era, comprou os cinqüenta reais de passas e voltou pra casa feliz de ter cumprido a missão. Quando minha avó viu aquela sacola cheia de passas, ficou brava demais.
Minha tia ficou triste de dar dó, e minha mãe, tentando consolar, lhe disse: “Não preocupa, Jane. Na vida tudo passas”.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

a bela e a fera

Quando vi, nem dei atenção. Uma pessoa velha, dessas que dá aquele aperto dentro do peito. Aquele pensamento de que a vida já está feita, de que agora é com os outros.
Mas ele subiu no mesmo ônibus que eu. E se sentou em uma cadeira de frente pra minha. Não teve como reparar naqueles olhos. A cor já nem lembro qual era. (azul, talvez.)
Mas tinha um brilho, desses lacrimejados. De quem levou o mundo nas costas e o fez bem. De que foi fazendo assim, meio sem prumo e as pessoas foram surgindo – assim como um alicerce as avessas – e foi ficando ele bem fundo num chão. Agora, lá estava ele. Dessa vez, sozinho.
E os alicerces já se corroeram. Chegara lá, onde tudo começou – com aquela sensação de que se tem que fazer algo da própria vida.
E ele me lembrou um outro, mas chegou meu ponto e eu desci.
As duas vidas continuaram, mas aquele brilhozinho ficou lá (e aqui).

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

geny e o zepelin

As histórias são tantas, e tão bonitas, e algumas tristes. Muitas começam de verdade e pode ser que terminem desenhadas – como um sonho. E essa talvez seja assim.

Era uma família grande, de povo forte, desses com a tristeza pra dentro e a alegria pra fora. Tinham todos aquela cor bonita, aquele negro forte, brilhante. Os pés quase sempre no chão, sentindo e fazendo-se sentir pela terra. Já a terra, essa era seca, brava. Terra do Vale do Jequitinhonha, torturada pelo sol.
A mãe era Maria (da mãe não se falava muito), o pai, Firmino. As irmãs eram muitas. A mais velha chamava Clotildes, depois Elza, Ermínia, Edlourdes, Marlene, Geny e Joelma e os caçulas Claudio e Vanilson.
A mãe morreu assim, como morre um passarinho – bem debaixo daquela árvore no quintal. Os filhos, todos ainda criança, o mais novo, Vanilson, de três meses ainda. Ela tinha oito anos, quando se viu assim, meio nua na vida. O pai era alcoólatra, mas apesar de pouca instrução nada faltava a eles.
A cidade toda comentava, estavam as filhas do Seu Firmino todas destinadas a serem mulheres da vida. A mais velha, Clotíldes, logo se foi, tentar a vida em São Paulo. As que ficaram lhe tomaram ódio. E tomaram ódio também daquele povo que maldizia do futuro delas.
Ficou então jurado de sangue (guiado pela atuante mãe – Elza), que nenhuma delas ia ter sexo. E assim foram seguindo a vida, com a promessa dentro do peito. Já não podiam mais seguir com os estudos pois o sustento da família dependia delas.
Em tempo de colheita de acordavam antes do sol para esperar o caminhão, e quando esse chegava, já abarrotado de gente, elas iam felizes com seus lenços na cabeça e aquela voz forte cantando alto. Eram dias felizes esses de colheita.
Quando tinha quinze anos ela se viu com o coração laçado. Seu nome era Arlindo. Era com ele que ela ia se casar. Estava muito feliz, estava noiva! E a promessa feita com a irmã estava sendo cumprida. Onde ele trabalhava havia reservatórios imensos. Algo como uma hidroelétrica. E foi esse lugar que o matou. Estava lá trabalhando e caiu no reservatório, morreu eletrocutado.
Era tristeza que não cabia mais nela. “Essa vida me dá muito desgosto”. E aquela tristeza que morava dentro, começava a sair. Naquela cidadezinha do Vale do Jequitinhonha não cabia mais ela.
E foi com o coração apertado que ela juntou suas roupas e foi tentar a vida em Belo Horizonte.
Chegou meio perdida e foi através de sua amiga Lica que conheceu meu pai e acabou indo para minha casa ser babá.
A moda na época era dançar lambada. E com sua mini-saia rodada e suas pernas de negra forte ela ia com os amigos pros subúrbios de Belo Horizonte. Havia oito meses que ela trabalhava na minha casa quando saiu pra uma boate com uma amiga. Fim de noite e a amiga sai com o namorado da boate. Depois de um tempo ela sai, está descendo a rua quando se sente seguida. Começa a correr com medo mas o homem a alcança, a joga em um terreno ermo e a estupra. Lhe faz um corte grande no antebraço e diz que isso é pra ela nunca mais esquecer.
O homem foi, dias depois, encontrado morto – assassinado. Ele já havia estuprado várias garotas naquela região.
Ela voltou com uma culpa que não cabia dentro do peito. Pensava ter traído a promessa feita a irmã-mãe. Voltou pra Itamarandiba com o plano de pedir perdão e suicidar.
Lá chegando foi acolhida, ouvida, e “perdoada”. Ficou um tempo em sua cidade, mas acabou voltando pra Belo Horizonte. Voltou cheia de raiva e descrença na vida.
Continuou em minha casa, nas férias voltava pra sua cidade e trabalhava nas colheitas de café. E sempre que podia mandava dinheiro a Edo (nome pelo qual chamava sua irmã-mãe).
Não falava nada da sua vida, tinha brincadeiras brutas, era brava e imponente. Lia e escrevia o tempo todo. Era meio irmã, meio mãe, mas nunca se aproximava de verdade. Não se deixava ser fotografada, não participava das festas, estava sempre dosando as coisas.
Passávamos horas e horas juntas, ela me buscava na escola, me levava na pracinha, fazia mexido a tarde, me deixava dormir na cama dela quando minha mãe não estava.
Ela tinha cadernos e cadernos de histórias que escrevia. Minha mãe sempre insistiu pra que retomasse os estudos. Um dia, depois de doze anos de insistência, entrou novamente na escola. Era a melhor aluna. Trabalhava de dia e estudava à noite. Ia tão bem na escola que foi adiantada e se formou bem antes do previsto.
Na formatura estava linda. De vestido longo e cabelo arrumado. Flores na mão e no rosto um sorriso que não cabe dizer.
Formando, fez um curso de segurança e um cursinho de vestibular. Passou em um concurso público e entrou em uma faculdade também publica.
Hoje trabalha em uma penitenciaria, cursa Pedagogia na Universidade Estadual de Minas Gerais, tem sua casa própria e mora com o irmão Claudio. O resto da família segue em Itamarandiba, com exceção do pai, que veio a falecer de câncer em Belo Horizonte e da irmã mais velha que segue em São Paulo.